FILOSOFIA

A natureza humana em Michel Montaigne e Blaise Pascal

A natureza humana em michel de montaigne e Blaise Pascal

A Era Moderna corresponde ao aumento da diversidade cultural, causado pela decadência do sistema feudal e surgimento do capitalismo. A Igreja ainda mantém forte influência e os pensadores modernos, como Michel de Montaigne e Blaise Pascal, enfrentam a pluralidade de perspectivas que surge com o choque de culturas e costumes.

Dentro desta nova realidade, filósofos modernos deverão responder o que é a natureza humana. Tanto Montaigne como Pascal eram pensadores cristãos, o que decisivamente influenciou suas filosofias, mas, apesar disso, suas ideias diferem em vários pontos, coincidindo apenas na percepção do homem como ser limitado e vítima das circunstâncias, restando a ele apenas salvação pela aceitação da fé cristã.

INTRODUÇÃO


As visões antropológicas de Michel de Montaigne e Blaise Pascal foram concebidas durante o período Moderno, que vai do século XVI ao XVIII. A influência do cristianismo ainda é forte, com exceção do mundo oriental. No entanto, essa época corresponde a uma circulação cada vez maior, na Europa, de culturas, costumes e valores, além de um crescente questionamento do poder da igreja. É esse também o período da Reforma Protestante e do Renascimento.

Pensar o homem, durante a Idade Moderna, implicava em responder questionamentos que surgem da pluralidade de perspectivas, ocorrida com o encontro de povos estimulado pelo surgimento do capitalismo e derrocada do feudalismo.

O relativismo cultural e o ceticismo se tornam ideias cada vez mais difundidas. Os costumes considerados sagrados por um povo eram heréticos para outro, o Deus cristão se confronta com outros deuses e outras visões de mundo.

Idade-Moderna-HISTORIA-DO-MUNDO

O início da era moderna representou um choque de costumes, culturas e paradigmas que obrigou pensadores como Montaigne e Pascal a buscar novas respostas para a pergunta “o que é o homem?”. Como esses dois filósofos eram pensadores cristãos, suas conclusões necessariamente foram dentro deste paradigma. Mesmo assim contribuíram para o enriquecimento deste importante tema filosófico.

Devido a isso, alguns filósofos modernos, entre eles Michel de Montaigne e John Locke, passam a definir o homem como vítima do destino, não persistindo nele singularidade alguma além dos estímulos do meio em que vive. Os pensadores inseridos nesse período têm de se haver como todas essas questões para responder uma das perguntas fundamentais da filosofia: o que é o homem?

Montaigne não se deixa captar tão facilmente, devido à ambiguidade e contradição que permeiam sua principal obra, Os Ensaios. A falta de sistematização reflete sua perspectiva cética baseada no relativismo cultural.

Para Montaigne, o conhecimento humano não é nada confiável, pois, sofrendo a influência de fatores diversos, não pode ser avaliado com precisão. Segundo ele, “dois homens nunca tiveram a mesma opinião sobre a mesma coisa”. Como Sócrates, que disse saber apenas que nada sabia, Montaigne iguala o dogmatismo à ignorância, e o estilo não-sistemático de sua filosofia reflete sua opinião de que nossa atitude de ordenar o conhecimento humano é vã. (OLIVER, 1998, p. 64)

Devido a isso, Montaigne adotou um estilo de investigação original para sua época, buscando analisar a si e ao mundo de forma espontânea, saltando de um assunto a outro conforme sua disposição e interesse. Sua percepção do homem como vítima das circunstâncias e incapaz de atingir qualquer verdade através da razão é norteadora de seu ceticismo.

Somos vítimas da inconstância, da irresolução, da incerteza, do luto, da superstição, da preocupação com a morte, inclusive o de depois da morte, da ambição, da avareza, do ciúme, da inveja, dos apetites desregrados e insopitáveis, da guerra, da mentira, da deslealdade, da intriga, da curiosidade. Pagamos, pois, bem caro a tão decantada razão de que nos jactamos, e a faculdade de julgar e conhecer, se a alcançamos, é à custa do número infinito de paixões que nos assaltam sem cessar. (MONTAIGNE, 1972, p.229)

descobrimento-do-brasil

Pensar o homem, durante a Idade Moderna, implicava em responder aos questionamentos que surgem da pluralidade de perspectivas, ocorrida com o encontro de povos estimulado pelo surgimento do capitalismo e derrocada do feudalismo na Europa. O relativismo cultural e o ceticismo se tornam ideias cada vez mais difundidas.

Pascal, por sua vez, tenta indicar uma ideia mais clara sobre o homem, que vai diretamente ao encontro da verdade estabelecida pela fé cristã, e critica a falta de sistematização de Montaigne, relacionando sua falta de clareza a uma visão deturpada de homem e de mundo, influenciada pelo paganismo e desrespeito a Deus e à vida.

De fato, Montaigne submeteu seu livro, Os Ensaios, à censura Papal e recebeu ressalvas, mas sem impeditivos à sua publicação. Mesmo assim, Pascal ataca Montaigne:

Ele inspira uma despreocupação com a salvação, sem temor e sem arrependimento. Não tendo o seu livro sido feito para conduzir à piedade, ele não estava obrigado a isso, mas sempre se está obrigado a não desviar-se dela. Pode-se desculpar os seus sentimentos algo livres e voluptuosos em alguns encontros da vida, mas não se pode desculpar seus sentimentos pagãos a respeito da morte. (PASCAL, 2000. p. 279. Pensamento 680).

Pascal aponta o homem como ser miserável, vítima das circunstâncias, no entanto dotado de consciência que lhe confere dignidade, pois só o homem, apesar de sua impotência, é consciente de sua condição.

O homem não é senão um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Mas, ainda que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre que aquilo que o mata, pois ele sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele. (PASCAL, 2000. p. 86. Pensamento 200).

A NATUREZA HUMANA SEGUNDO MICHEL DE  MONTAIGNE


Michel de Montaigne

Montaigne apresenta sua visão de natureza humana através da defesa dos argumentos do livro “Teologia Natural ou Livro das Criaturas”, de Raymond Sebond, presente dado por Pierre Buñel ao pai de Montaigne. Buñel defendia que a Reforma de Lutero era uma doença que iria degenerar na disseminação do ateísmo, e a leitura de Sebond era apropriada às circunstâncias, uma vez que o livro era uma defesa da existência de Deus, realizada através da demonstração da sabedoria da natureza.

A esse respeito Buñel mostrava-se clarividente, prevendo, simplesmente pelo raciocínio que esse princípio de doença degeneraria logo em execrável ateísmo, isso porque o vulgo, não sendo capaz de julgar as coisas em si, se atém às aparências. Quando se põem em dúvida certos pontos de sua religião, submetendo-os a seu julgamento, ele acaba muito rapidamente a sentir a mesma incerteza com todas suas demais crenças. (MONTAIGNE, 1972, p.209)

Raymond Sebond, era um médico espanhol do século XIV, e sua obra é um considerada um marco da Teologia Natural, que tenta provar a existência de Deus sem recorrer a revelações.

A defesa dos argumentos de Sebond, realizada por Montaigne no ensaio Apologia a Raymond Sebond, é um artifício utilizado para defender sua própria visão de natureza humana. Montaigne ataca a razão como algo limitado e incapaz de apreender a sabedoria divina, que somente poderia ser percebida através da fé.

Abandonados unicamente à nossa inteligência, não seremos capazes, pois se assim fosse, muitos espíritos superiores e privilegiados como os que floresceram nos séculos passados teriam chegado à fé por intermédio da razão. É somente a fé que nos revela os inefáveis mistérios de nossa religião e nos confirma sua verdade. (MONTAIGNE, 1972, p.209).

No entanto, Montaigne tem um estilo que dificulta a definição de sua real posição, uma vez que, neste ensaio, tanto defende a religião cristã quanto ataca os costumes cristãos. Sua crítica aos cristãos procura demonstrar que eles mesmos não compreendem e não seguem os preceitos de sua religião como deveriam.

Deveríamos envergonhar-nos. O adepto de qualquer seita humana, por estranha que seja, a ela adapta rigorosamente sua conduta, e nós outros cristãos só nos unimos à nossa divina doutrina por palavras. Quereis prova? Comparai nossos costumes aos dos maometanos e dos pagãos e  vede quanto os nossos são inferiores, mesmo quando devido à superioridade de nossa religião deveríamos brilhar extraordinariamente. Cumpriria que dissessem: são justos, caridosos e bons, logo devem ser cristãos. (MONTAIGNE, 1972, p.209).

Ao longo do ensaio, Montaigne cita vários exemplos de comportamento e lealdade dos animais, procurando demonstrar a superioridade e sabedoria encontradas na natureza, principalmente quando comparadas com nosso comportamento e nossa razão.  Para Montaigne, as obras dos animais não são sequer compreendidas pela razão humana e de forma alguma podemos ter a pretensão de nos sentirmos superiores a eles.

Constatamos que na maior parte de seus trabalhos e obras os animais nos são superiores e que nossa arte não consegue imitar-lhes com grande êxito as realizações, e no entanto no que fazemos, inferior ao que fazem os bichos, pomos toda nossa alma e apelamos para nossas faculdades. (MONTAIGNE, 1972, p.216)

O aspecto moral do comportamento dos animais é outro recurso por ele utilizado para atacar a moral dos homens, julgando-a frágil e condicionada pela cultura e costumes locais. Mesmo em sua moralidade, os animais seriam superiores a nós.

Se, para sermos justos, devemos dar a cada um o que lhe é devido, diremos que os animais servem, amam e defendem seus benfeitores; perseguem e agridem os estranhos e os que os ofendem, praticando uma justiça igual a nossa. E vemos também que tratam com equidade perfeita seus filhos. Quanto à amizade praticam-na os animais, sem dúvida alguma, de forma mais constante e viva do que o homem. (MONTAIGNE, 1972, p.222)

Montaigne é considerado um cético e adotou o relativismo cultural, o que pode ter influenciado seu estilo contraditório. Sua obra Ensaios é uma afirmação desse relativismo, uma vez que não é sistematizada, mas uma coleção de ensaios que eram escritos de acordo com seu interesse e disposição, o que reflete sua visão sobre a natureza humana. O homem, para esse filósofo francês, é vítima das circunstâncias, dos costumes e não tem em si nada de singular ou verdadeiro, uma vez que a própria verdade é também relativa.

Mediante esse relativismo, defende a submissão do homem à tradição (no seu caso, a tradição cristã), uma vez que não existe verdade alguma, é mais seguro e conveniente adotar a verdade de sua cultura, pois a substituição de uma crença por outra implicaria, em um curto espaço de tempo, a não ter crença alguma.

Temos, portanto, quando se apresenta uma nova doutrina, razões de sobra para desconfiar e lembrar que antes prevalecia a doutrina oposta. Assim como esta foi derrubada pela recente, no futuro uma terceira substituirá provavelmente a segunda. {…} Quando me atiram um argumento novo, ponho-me a pensar que o que não pude resolver, outro resolverá e que dar fé a todas as aparências de que não nos podemos defender é grande simplicidade. (MONTAIGNE, 1972, p.268)

Por fim, Montaigne exalta sua própria religião, no entanto, não deixa claro se sua escolha se deve à crença da superioridade de sua religião ou à conveniência da submissão à tradição.

Não tampouco pode ocorrer que o homem se eleve acima de si mesmo e da humanidade, porque só pode ver com seus olhos e aprender com seus próprios meios. Elevar-se-á, se Deus lhe quiser dar a mão. Elevar-se-á sob a condição de abandonar seus meios de ação, de renunciar a eles e se deixar erguer. {…} É nossa fé cristã, e não a virtude estóica dos filósofos, que pode operar essa divina e milagrosa metamorfose. (MONTAIGNE, 1972, p.283)

A NATUREZA HUMANA SEGUNDO BLAISE PASCAL


Blaise Pascal

Se em Montaigne nós temos um ceticismo que é oriundo do relativismo cultural, em Pascal esse ceticismo é superado pela percepção de uma “razão do coração”.  O homem não é apenas fruto de sua cultura e seus costumes, mas tem em si uma razão que é além da razão. Dessa forma, Pascal indica uma concepção de natureza humana formada pela razão e pela emoção.

O coração tem razões que a razão desconhece; sabe-se disso em mil coisas. Digo que o coração ama o ser universal naturalmente e a si mesmo naturalmente, conforme ao que se dedica, e ele se endurece contra um ou outra à sua escolha. Rejeitastes a um e ficastes com o outro; será pela razão que vos amais? (PASCAL, 2000. p. 164. Pensamento 423).

Portanto, se em Descartes a racionalidade se separa da razão, em Pascal teremos uma fusão desses dois elementos. Pascal, assim como Montaigne, vê o homem como um ser miserável e subjugado pela natureza, no entanto Pascal indica que ele é o único com consciência de sua condição, o que o faz mais digno que os outros seres. Sua natureza racional e emocional o faz perceber sua real condição. Essa percepção é oriunda da razão do coração.

Se em Montaigne temos a aceitação da religião cristã por conveniência, em Pascal essa aceitação é a única forma de restituir a unidade do homem. Pascal defende o cristianismo como único caminho possível para retornar ao criador. Nossa natureza é constituída da origem divina e da miséria humana, esta última proveniente do pecado original. São as razões do coração, contraditórias quando observadas de forma puramente racional, que restituem a dignidade do homem.

É o coração que sente a Deus e não a razão. Eis o que é a fé, Deus sensível ao coração, não à razão. Pensamento 424.

A religião cristã é a única a tornar o homem amável e feliz ao mesmo tempo; na fidalguia não se pode ser amável e feliz ao mesmo tempo. Pensamento 426. (PASCAL, 2000. p.164)

Pascal chega a desprezar as demais religiões como incapazes de restituir esta unidade, pois a redenção só seria possível através de figura de Jesus Cristo. Não é o caso de apenas crer em Deus, em uma instância superior que a tudo governa, mas crer em Deus através de Jesus Cristo.

Não somente nós não conhecemos a Deus senão por Jesus Cristo, mas não conhecemos a nós mesmos senão por Jesus Cristo; não conhecemos a vida, a morte senão por Jesus Cristo. Fora de Jesus Cristo não sabemos é nem nossa vida, nem nossa morte, nem Deus, nem nós mesmos. Assim, sem as Escrituras, que só têm a Jesus Cristo como objeto, não conhecemos nada e não vemos senão obscuridade e confusão na natureza de Deus e na própria natureza. (PASCAL, 2000. p. 157-158. Pensamento 417).

 Dessa forma, temos em Pascal uma concepção da natureza humana que é racional e divina. A imagem de Deus está impressa no coração do homem, a razão do coração é o sentimento de origem divina que está além de toda racionalidade. No entanto, a razão do coração, em Pascal, nos aponta para a verdade absoluta da religião cristã e de Jesus Cristo. É através da religião cristã que percebemos nossa miséria, oriunda do pecado original, e ao mesmo tempo, através da reflexão dessa condição, nos tornamos conscientes. A razão do coração nos dá dignidade e grandeza ao assumir a parcela divina de nossa natureza.

O próprio Pascal aponta a contradição entre o racional instrumental e o racional sentimental. Mas isso se dá pelo fato que a razão não pode compreender aquilo que a ultrapassa, e que o próprio pensamento racional é ilusório e não pode requerer para si verdade absoluta, pois a compreensão da verdade está acima da capacidade racional. A racionalidade sempre será contraditória, pois assume somente um lado da natureza humana, a saber, o mais miserável. Enquanto que, em Pascal, o absoluto se revelou na natureza oposta de Jesus Cristo, que era homem e Deus. E é o homem, então, humano e divino. Tal é a concepção da natureza humana em Pascal.

EM QUE COINCIDEM AS VISÕES ANTROPOLÓGICAS DE MONTAIGNE E PASCAL?


Apesar das críticas de Pascal a Montaigne, existem elementos comuns em suas concepções antropológicas. Tanto Pascal quanto Montaigne advogam que o homem é um ser miserável e suscetível a todo tipo de influência.  Diante disso, Montaigne sugeriu a submissão à tradição, pois se não temos como obter conhecimento seguro sobre coisa alguma, é mais conveniente buscar o conforto das verdades estabelecidas. Pascal, por sua vez, percebe a condição vulnerável do homem, mas indica que o homem tem também uma natureza dupla, divina e humana, e ao ouvir as razões do coração e aceitar a redenção na figura de Cristo, adquire consciência e dignidade. Apesar das diferentes soluções dadas por esses filósofos, a percepção de uma condição humana frágil e suscetível é o fator comum de seus pensamentos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


MONTAIGNE, Michel de. Os Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. Editora Abril, 1972.

OLIVER, Martyn. História Ilustrada da Filosofia. Tradução de Adriano Toledo Piza.  Barueri: Editora Manole, 1998.

PASCAL, Blaise. Pensamentos. Tradução de Mário Laranjeira.  (Edição Louis Lafuma). São Paulo: Martins Fontes, 2000.

AutorAlfredo Carneiro – Graduado em Filosofia e pós-graduado em Filosofia e Existência pela Universidade Católica de Brasília.


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