A incrível história da Mídia e da Comunicação Literária

Muito se discute hoje sobre o destino da literatura e do livro impresso na era digital.  O livro, como símbolo maior da cultura ocidental, parece estar ameaçado pelas novas tecnologias.  Mais uma vez surge o debate entre os “integrados” e os “apocalípticos”. Os “integrados” defendem as vantagens da virtualização da literatura enquanto os “apocalípticos” afirmam que as novas mídias  podem imbecilizar e fazer com que as pessoas, aos poucos, percam a habilidade de ler e interpretar.

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Ao contrário do que afirmam as posições radicais, o que estamos presenciando é uma nova relação com o saber promovida pelas mídias digitais. O trabalho individual e autoral começa a perder espaço para uma dinâmica colaborativa. Essa dinâmica não é nova, pois já ocorria na tradição oral e na tradição escrita. Uma rápida visão da história da mídia e da comunicação literária pode, acredito, nos dar algumas respostas sobre essa dinâmica.

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Este post foi inspirado no texto Processos Midiáticos e Comunicação Literária, de  Heidrun Krieger Olinto.

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A Cultura Oral
A transmissão de conhecimentos sofreu várias modificações na sua mídia ao longo da história da humanidade, considerando que a mídia é o suporte da mensagem que é transmitida. Assim, a transmissão oral,  cantada e falada, foi responsável por grande parte dos conhecimentos que nos chegaram da antiguidade e até mesmo de épocas anteriores à escrita.  A mensagem oral atingia todos os sentidos do receptor, que eram as pessoas que, ao redor das fogueiras, ouviam histórias milenares de mitos, lendas e heróis, contos de sabedoria impregnados de encantamento.

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Algo que se aprende assim fica marcado de forma indelével na memória e pode ser lembrado anos e anos depois, pois envolvia ouvir, ver, interagir e se emocionar.  A cultura oral construiu as identidades culturais dos povos. A mídia, o suporte da mensagem, era o próprio homem com seu gestual, sua voz e sua dramaticidade..

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“Origina-se do primórdio dos tempos, quando ainda não havia a escrita e os materiais que pudessem manter e circular os registros históricos, e na atualidade própria das classes iletradas, a tradição oral tem sido, contudo, muito valorizada pelos eruditos que se dedicam ao seu estudo e compilação (os contos dos Irmãos Grimm, por exemplo), ao considerarem que é na tradição oral que se fundamenta a identidade cultural mais profunda de um povo. Supõe-se, por exemplo, que a Ilíada e a Odisseia de Homero foram, inicialmente, longos poemas recitados de memória.”  Wikipedia – Tradição Oral

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O surgimento da escrita

Com o surgimento da escrita entramos na era da cultura letrada manuscrita. Os escritos, copiados a muito custo, eram lidos em voz alta. Nascia a chamada “leitura acústica”.  A mensagem ganhava  uma nova mídia, um novo suporte, que era papiro, o couro ou mesmo os livros artesanais.  No entanto a oralidade ainda era mantida. A palavra escrita era apropriada plenamente pela percepção visual, pela recepção dos sons e pelos gestos. Era, portanto, um “processo perceptivo sensorial global”.  Os manuscritos eram muito valiosos e  precisavam ser copiados para uso particular.  Ao contrário do que acontece atualmente com a recepção passiva do  livro impresso, os manuscritos demandavam um esforço sensorial ativo e cada manuscrito acabava por ter o estilo e ponto de vista pessoal daquele que o copiava.

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“Trata-se, portanto, de processos perceptivos sensoriais globais que permitem lidar com a palavra escrita e apropriar-se dela materialmente de forma plena : pela percepção das letras com os olhos, pela recepção do som pelos ouvidos, pela realização da fala com o movimento dos lábios e pelos movimentos senso-motores do corpo no rímodo da sequência verbal.”  Heidrun Krieger Olinto

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O livro impresso

A criação do livro impresso permitiu a massificação do saber e a gradativa exclusão do corpo e da experiência sensorial.  A leitura passou a ser uma atividade pessoal,  fortemente visual e passiva.  A “esfera acústica” passou a dar lugar a “esfera ótica”.  Ocorre uma mudança na mídia, que passa do livro artesanal para o livro impresso em larga escala.  O livro, como mecanização de uma arte artesanal, passa a ser reproduzido de forma homogênea e sem alterações personalizadas.  A uniformização visual da escrita passou a colocar o conjunto dos sentidos em segundo plano. A antiga comunicação literária, que exigia da audição, da visão e do gestual, é gradativamente deixada para trás.  A interatividade coletiva que ocorria na cultura oral  é substituída pela contemplação individual.

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Com o livro impresso nasce o direito autoral, a massificação das ideias e a multiplicidade dos pontos de vista. A nova mídia afeta de forma decisiva as culturas e dissemina o conhecimento. Mais do que afetar a cultura, ela promove profundas modificações no ser humano. Nasce a diferença entre razão e  sentimento.  Corpo e espírito passam a ser coisas separadas.  O autor passa a ter um posição privilegiada, uma vez que a interatividade que ocorria na oralidade deixa de existir.  A contribuição da coletividade é substituída pela opinião individual. O que antes era uma coisa só na cultura oral (o corpo, o gesto, o sentimento e a voz)  passam a ser vistos como coisas distintas. A  reconstrução do sentido precisa de uma leitura bem sucedida. Emissor e receptor se tornam invisíveis e anônimos.

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“Para Hans Ulrich Gumbrecht,  foi a literatura, mais do que outra forma de comunicação, que- com a introdução do livro impresso- contribuiu para a separação do corpo e do espírito. Segundo ele, a disseminação do livro impresso introduziu uma mudança estrutural responsável pela exclusão do corpo. O resultado dessa mudança midiática encontra na sua fórmula máxima na separação de sentimento e razão, ou seja,  na cisma entre corpo e espírito. Conceitos de verdade passam a orientar-se em dados empíricos e experimentação exata e na formalização de hipóteses segundo um modelo de lógica matemática.  “

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A Era Digital

O que observamos hoje é  um retorno das antigas formas de comunicação. A era digital promove a união entre “esfera visual” e a “esfera acústica”.  Os gestos corporais e a sonoridade resurgem em vídeos espalhados pela rede. A leitura de um livro, e seu esforço de compreensão, é complementada pela vídeo-aula de um professor, que com seus gestos e sua voz ampliam o entendimento e resgatam a importância da oralidade. O receptor tem agora, depois de séculos, a possibilidade de transformar o texto e dar sua opinião e contribuição através de comentários pessoais e vídeos-resposta, algo parecido com o que acontecia na época do livro artesanal. O gesto ativo do receptor passa a transformar o conhecimento conforme acontecia na tradição oral.  O direito autoral, ícone do livro impresso e da indústria cultural,  se esvai na coletividade.

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“Marshall McLuhan vincula a audiovisualidade da mídia eletrônica a essas formas antigas da cultura manuscrita fundada sobre articulações recíprocas entre os processos perceptivos do ouvir e do ver e a presença de gestos corporais. Para ele, a eletrotécnica permitiria recuperar significados antigos para a palavra falada e cantada,  conjugada à imagem visual dos falantes e dos cantores que o advento dos tipos impressos tinha praticamente afastado. (MacHulan, 1962). “

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O que estamos assistindo, portanto,  é uma nova relação humana com o saber promovida pela união do texto com a audiovisualidade e interatividade das mídias eletrônicas.  É importante observar que a cultura oral nunca deixou de existir,  e é provavel que o livro também não deixe de existir. O que existe, dentro da ampla perspectiva da história,  é a transformação,  integração e evolução das mídias.