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Quando Nietzsche riu de mim

Nietzsche

“Como assim??” Diante de uma frase de Nietzsche, um leitor fez esse comentário simples mas provocador na página do netmundi.org no facebook. A frase era: “O vestido preto lhe cai bem, e a boca fechada também.” Esquecendo que o filósofo alemão era um mestre nas palavras, decidi responder rapidamente. Tanto as biografias de Nietzsche quanto o romance “Quando Nietzsche Chorou”, de  Irvin D. Yalom, exploram essa questão de Nietzsche com as mulheres. Ele tinha sérios problemas de saúde, fato que, segundo alguns biógrafos, prejudicava sua vida sexual. Amou Lou Salomé, uma mulher além de seu tempo e inteligentíssima para quem o filósofo escreveu: “De que estrelas caímos para nos encontrar?” Perdeu seu amor para o amigo Paul Rée, o que lhe afetou profundamente. Baseado nesse conhecimento prévio, respondi ao leitor:

Essa frase corresponde a uma das várias provocações de Nietzsche às mulheres. Falam de um Nietzsche machista e castrador, mas conhecendo melhor a vida dele, observei que ele sofreu por causa das mulheres (mais especificamente por causa da Lou Salomé). Então ele ataca as mulheres de fato, mas não porque as julgue inferiores, mas porque sabe o quanto os homems sofrem por causa das mulheres. Existe frase dele assim: “vai encontrar uma mulher? leve um chicote.” A mulher é um animal como um cavalo? Tem de ser adestrada? É para bater na mulher? Enigmática não? Outra frase é essa: “A verdade é como uma mulher: deve ser conquistada.” Nietzsche praticamente usa a mulher como um recurso filosófico.

Frase de Friedrich Nietzsche

Contudo, quando terminei de responder ao leitor, ouvi uma risada fantasmagórica. Na televisão passava o filme de terror/suspense “Água Negra”, mas a risada estava dentro da minha cabeça. Na sala escura quase vi uma cena de terror: Nietzsche de olhos arregalados e bigode trêmulo rindo de mim. Percebi o que tinha acontecido. Nietzsche havia me enganado mais uma vez com suas armadilhas, como faz com todos que dele se aproximam rapidamente. “Sou fogo, com certeza,” sussurrou. Mais uma vez me aproximei de uma frase sua impulsionado pela comunicação rápida da internet. Meus dois gatos pretos, companheiros noturnos, me olhavam cobrando uma resposta à provocação daquele daemon de bigode. Refleti um pouco mais e escrevi outra resposta ao leitor.

 Mas veja só a armadilha que Nietzsche nos arma: ele não manda a mulher calar a boca por ser burra. Ele fala do vestido dela, talvez ela tenha ficado tão bela que não deva dizer mais nada, para que a beleza seja apreciada. Sobre o chicote, ele não manda bater nela. Mandou levar um chicote. Pode ser para o próprio homem que vai  tornar-se um animal adestrado pela mulher. Observe o “Deus está morto”. Ele não disse “Deus não existe” (muita gente se confunde com isso) ele disse que ele estava morto. É diferente de não existir. Muitos se enganam com Nietzsche achando que era um provocador superficial. Ele era um mestre nas palavras. Basta lembrar que antes de filósofo ele era considerado um filólogo brilhante.

nietzsche_paul-ree_lou-von-salome

Nessa foto é Lou Salomé que está segurando o chicote e dominando Nietzsche e Paul Rée, como se fossem cavalos. Para quem, então, é o chicote que Nietzsche aconselha levar quando for encontrar uma mulher?

Nietzsche conseguiu, mais uma vez, cumprir seu papel de filósofo que provoca o pensamento. O filósofo-dinamite brinca com as palavras, engana e queima os incautos. “Deus está morto” é uma frase que até hoje causa debates, brigas e conflitos. Certa vez disse esta frase para uma amiga religiosa e ela retrucou: “Ele não está morto, mas ressuscitou depois de três dias. Deus está vivo.” Quem disse que era de Jesus que Nietzsche falava? Mais uma vez ouvi uma risada nietzschiana. Se você falar essa frase para uma determinada aldeia de esquimós, eles ficarão surpresos por você afirmar que o Sol está morto.

Nietzsche chama a atenção para a cena do julgamento de Jesus. Diante da resposta de Cristo (“Eu sou o caminho, a verdade e a vida”) Pilatos pergunta: “E o que é a verdade?”  Claro, o nobre romano não estava no deserto ouvindo parábolas, portanto, era preciso dar significados às palavras. Ele queria saber o que era “verdade” para Jesus. Nietzsche afirma que essa foi a única contribuição filosófica dos Evangelhos.

Nas conversas cotidianas sempre assumimos que o significado de uma palavra (ou sentido de uma frase) é aquele que achamos que é.  Nietzsche sabe disso e usa essa tendência para criar “armadilhas linguísticas” e deixar as almas pouco investigativas se debatendo. Tornou-se um bigode-fantasma gargalhante.  Mas ele não se interessa pelas pessoas que se debatem em suas armadilhas. Escreveu para os que ficam intrigados, para os que ainda sabem rir de si mesmos. Ele mesmo escreveu: “moro em minha própria casa, nunca imitei ninguém. Rio de todos os mestres que nunca riram de si.”

Assim, enquanto eu ouvir essa risada (esse daemon moderno)  vou entender como bom sinal. Quer dizer que ainda estou pensando e que não me entreguei aos dogmas ou ideologias. Quer dizer que ainda sei rir de mim mesmo e um dia poderei morar em minha própria casa.

Autor: Alfredo Carneiro
Editor do netmundi.org
twitter:@alfredo_mrc