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Journaling: terapia, imaginação e autoconhecimento

Vincent van Gogh - Journaling

Journaling sempre foi prática comum entre artistas, escritores e pensadores. Atualmente é utilizado também como recurso terapêutico. Não há tradução literal para o termo, sendo melhor entendido como hábito de registrar pensamentos e sentimentos em um diário.

Arthur Schopenhauer afirmou que “o mais belo pensamento pode ser esquecido se não é escrito”, por isso registrava sua rotina em diários; Friedrich Nietzsche se dizia “condenado a rabiscar”; os cadernos de Leonardo da Vinci tornaram-se tão famosos quanto suas obras; as centenas de cartas de Van Gogh revelam esboços de seus quadros e ideias artísticas.

Os exemplos de personalidades e suas anotações é vasto, desde escritores até executivos, como Jack Welch, ex-presidente da GE, que anotou sua mais conhecida estratégia no guardanapo de um restaurante.

Atualmente, muitas pesquisas são conduzidas com o objetivo de registrar os efeitos benéficos do journaling, que recebe também outros nomes, como “escrita expressiva” ou “escrita terapêutica”, porém, o termo em inglês se convencionou (mesmo no Brasil) para se referir à prática como processo terapêutico.

Contudo, talvez o exemplo mais ilustrativo de journaling seja a obra Memorial de Aires, de Machado de Assis, cuja narrativa é contada em forma de diário, como se estivéssemos lendo as anotações do personagem principal, o Conselheiro Aires, que escrevia “para matar o tempo da barca de Petrópolis”

O journaling permite não apenas registrar experiências e ideias, mas também materializar a vida interior, mais imaginativa, que, apesar de vivida todos os dias de forma privada, é tão decisiva quanto qualquer fato concreto. Essa materialização ocorre através da escrita, do desenho ou de colagens (scrapbook), criando assim um relacionamento mais concreto com nossa subjetividade.

Assim como podemos escrever nossa história interior, podemos também reescrevê-la, registrando desejos, ideias, imagens e novas possibilidades. Pensamentos repetitivos, intuições e até mesmo obsessões, uma vez registrados, podem revelar novas perspectivas. Também é normal que, durante a escrita, surjam ideias (ou soluções) que “aproveitam” a oportunidade surgida.

Dentre os benefícios registrados em pesquisas, estão o alívio da ansiedade, autoconhecimento, melhoria da memória e da autoconfiança, aumento da concentração, da produtividade e da criatividade.

Além disso, escrever sem regras e exigências se converte em estado meditativo, mantendo a mente concentrada no tempo presente e nos gestos da escrita. Esse é um dos efeitos mais citados pelos praticantes.

A leitura de nossos cadernos costuma surpreender: algumas vezes não lembramos de ter escrito certas coisas. Isso ocorre porque, quando passamos a anotar, surgem pensamentos que logo são esquecidos, tal como ocorre com os sonhosmas dessa vez registradas no papel.

Existe ainda uma variação direcionada para a produtividade pessoal — o Bullet Journal (também chamada de “BuJo”).

É recomendado o uso de cadernos, não de celulares e computadores. Mesmo que não seja exigência, eletrônicos emitem notificações que prejudicam a concentração. O simples fato de escrever no celular pode trazer o reflexo condicionado de acessar redes sociais ou consultar o e-mail.

Não há regras para o journaling, sendo mais recomendado escrever na medida em que os pensamentos surgem. Apesar disso, nada impede a criação de um método pessoal. Alguns adeptos preferem confeccionar seus próprios cadernos alegando conexão maior com a escrita. Outros recomendam um horário específico.

Journaling: imaginação e acesso ao inconsciente


O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung desenvolveu um método terapêutico de diálogo interior baseado na imaginação, descrito mais abaixo. Liberar a imaginação é um dos objetivos do journaling.

A importância da imaginação é amplamente reconhecida na pedagogia e utilizada em brincadeiras, histórias e jogos para estimular a mente das crianças. Contudo, fora do ambiente escolar, nossa cultura inibe a imaginação: sentar e devanear é visto como algo estranho ou até engraçado.

O que chamamos de imaginação, conforme afirmam filósofos e psicólogos, é uma dimensão fundamental do ser humano. Assim, inibir a imaginação pode causar prejuízos à inteligência e à saúde mental em qualquer fase da vida.

Sabendo bem disso, o físico Albert Einstein afirmou: “a imaginação é mais importante que a inteligência”. A ideia da Teoria da Relatividade surgiu quando Einstein se imaginou cavalgando um raio de luz em uma de suas rotineiras viagens de trem.

O psiquiatra Carl Gustav Jung, fundador da psicologia analítica, criou um método terapêutico baseado na imaginação — que ele chamou de Imaginação Ativa. Apesar de ser tema complexo com vasta literatura, a ideia da Imaginação Ativa surgiu quando Jung se imaginou dialogando com um velho e uma jovem, conforme seu relato na obra “Memórias, Sonhos e Reflexões”:

Para capturar fantasias, eu imaginava uma descida íngreme. Era como uma descida no espaço. Vi duas figuras, um velho com barba branca e uma bela jovem. Invoquei minha coragem e me aproximei deles como se fossem pessoas reais e ouvi atentamente o que me disseram […] outras figuras de minhas fantasias me trouxeram a ideia de que existem coisas na minha psiquê que eu não produzo, mas que produzem a si mesmas e têm vida própria.

Não há nada “sobrenatural” nesse diálogo imaginário. Para Jung, os sonhos, a imaginação e os devaneios são vias de acesso ao inconsciente; elementos fundamentais da alma — entendida aqui como psique. O equilíbrio da personalidade e a boa saúde mental dependem da harmonia entre nossa dimensão racional e nossa dimensão inconsciente.

O journaling permite esse reencontro com a imaginação. Uma vez aberto o caderno, podemos, por exemplo, permitir que alguma fantasia (como no exemplo de Jung) guie nossa escrita, desenhos ou colagens.

Journaling e doodles: os “rabiscos terapêuticos”


Exemplos do ilustrador sueco Mattias Adolfsson: rabiscos como método de criação de personagens.

Ainda que a escrita seja parte principal do journaling, o uso de desenhos também é forma de linguagem. Não se trata de “desenhar bem”, mas sim daqueles rabiscos despretensiosos que fazemos quando concentrados em outras atividades — como reuniões, aulas, falar ao telefone ou simplesmente distraídos. Não é importante técnica ou beleza, mas sim aspectos simbólicos.

As mesas dos estudantes são cheias desses desenhos, mais conhecidos pelo seu termo em inglês: “doodles“. Utilizo, mais uma vez, um termo estrangeiro pois foi o que se popularizou para se referir a esses desenhos.

Sobre os doodles, a arteterapeuta Luci Vilanova esclarece em seu livro “Rabiscos Terapêuticos”:

Doodle é um desenho feito sem destino específico e acontece quando se está concentrado em outra ação […] Enquanto é feito, não é avaliado ou criticado. Artistas visuais utilizam os doodles como berçário das formas e pontos de partida para grandes ideias. Quando elaboramos doodles, estamos mais receptivos a revelar imagens do inconsciente ou do inconsciente coletivo.

Quanto mais doodles são feitos, mais surgem padrões pessoais. Esses padrões são linguagem interior que solicitam relação maior com o autor; podem também ser padrões reprimidos pela mente consciente; não são falados ou escritos, emergem na forma de imagens nos rabiscos e desenhos. Sobre isso, Luci Vilanova diz:

O próprio desenho aponta para onde é preciso ir e revela o que a pessoa que desenhou precisa ver ou articular na fala […] Portanto, ao desenhar, conta-se uma história, é uma narrativa que talvez por palavras não seria fácil transmitir ou até mesmo compreender. O desenho vem como uma linguagem não verbal para expressar aspectos reprimidos do lado racional.

E acrescenta ainda:

Muitas pessoas na fase adulta continuam a riscar para registrar percepções, sentimentos e emoções. Porém, não dão importância ao que é produzido em uma simples folha de papel. Nem sabem que conteúdos simbólicos podem estar ali registrados, e acabam por atirar no lixo seus preciosos rabiscos. Mas o ato de rabiscar é preservado e segue em uso porque traz satisfação, às vezes paz e tranquilidade.

Acrescentar desenhos na prática de journaling não é diferente de escrever ideias ou sentimentos, pois, como foi dito, desenhos são também linguagem. Uma vez surgido um desenho repetitivo ou padrão, podemos fazer outros desenhos a partir desse ou escrever sobre os símbolos sugeridos.

Com isso aumenta-se tanto o potencial terapêutico do journaling quanto suas características criativas. Trata-se de uma “relação com a imagem”. A Psicologia Arquetípica, vertente criada por James Hillman, adota essa relação como ponto de partida:

[…] “ficar com a imagem” é regra básica do método da psicologia arquetípica […] As imagens psíquicas são encaradas como fenômenos naturais, são espontâneas, quer seja no indivíduo ou na cultura, e necessitam ser experimentadas, cuidadas, acariciadas, entretidas, enfim, respondidas. As imagens necessitam de relacionamento, não de interpretação. No momento que interpretamos, transformamos o que era natural em conceito, nos afastando do fenômeno.

Hillman sugere ainda que a vida psíquica é inteiramente ficcional, portanto, para tratar o indivíduo, é necessário tratar a história que ele conta para si mesmo:Contamos histórias e somos as histórias que contamos. Mais que isso, somos a maneira como contamos nossa história”. A prática do journaling como recurso terapêutico parte desse pressuposto.

Como fazer journaling: sugestões


Cole alguns post-its ao redor do caderno, faça desenhos ou escreva qualquer coisa neles. Diante da folha em branco podem surgir bloqueios. Rabiscar faz surgir pensamentos que podem ser prosseguidos no caderno. Se quiser, cole esses rabiscos nas páginas.

Cole no caderno bilhetes, tickets, ingressos ou qualquer papel que tenha significado pessoal. Esse é um hábito comum em registros de viagens, mas pode ser utilizado em qualquer momento. Já é um começo de scrapbooking.

Imagine que alguém está conversando com você, tal como no exemplo de Jung; registre a conversa ou anote as ideias sugeridas. Crie personagens na sua imaginação. Dê nomes e converse com eles. Diálogos imaginários ajudam a desbloquear a escrita.

Utilize canetas e cadernos específicos para o journaling. Cadernos pequenos (por exemplo, padrão 9×14 cm) podem ser úteis pela facilidade de transporte; ajudam a captar pensamentos (ou simplesmente fazer anotações rotineiras) em qualquer lugar. Mas isso não é regra, apenas sugestão.

Se você utiliza agenda de papel, já percebeu que é cheia de folhas não utilizadas. Faça anotações e desenhos nesses espaços.

Se for possível, faça rabiscos em reuniões ou aulas. Guarde esses rabiscos para buscar padrões de linguagem própria que auxilie em novas ideias. Cole-os depois em seu caderno.

Amplifique seus padrões. Por exemplo: se em seus rabiscos surgir algo parecido com uma porta, tente desenhar uma porta mais elaborada ou escreva o que lhe vier à mente sobre o símbolo. Essa é uma forma de descobrir e se relacionar com símbolos do inconsciente que pode promover alívio da ansiedade ou captar ideias.

Releia suas anotações. Essa é uma parte importante da prática do journaling, principalmente em seus aspectos terapêuticos.

Por fim, não se sinta pressionado. Se quiser, apenas ande com um caderno e escreva uma ou duas linhas sobre algum fator relevante do dia. Isso ajuda a criar o hábito de anotar.

AutorAlfredo Carneiro – Graduado em Filosofia e pós-graduado em Filosofia e Existência pela Universidade Católica de Brasília.

Bibliografia


  • JUNG, Carl Gustav. Memórias Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira 1986.
  • HILLMAN, James: Estudos de Psicologia Arquetípica. Rio de Janeiro, RJ: Achiamé, 1981.
  • HILLMAN, James: Ficções que Curam. Campinas, SP: Verus, 2010.
  • VILANOVA, Luci. Rabiscos Terapêuticos. Rio de Janeiro, RJ: Livros Ilimitados 2016
  • ASSIS, Machado. Memorial de Aires. São Paulo, SP: Editora Globo, 1997.

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