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O Quarto e os valores da Indústria Cultural

O Quarto, dirigido por Rubem Biáfora, com Sérgio Hingst (1968) O Quarto, dirigido por Rubem Biáfora, com Sérgio Hingst (1968)

O Quarto é um filme brasileiro de 1968, dirigido por Rubem Biáfora, com uma excelente interpretação de Sérgio Hingst. Quando escrevo sobre um filme, escrevo apenas aquilo que me chamou atenção na trama, principalmente aspectos filosóficos. No caso desse filme, me saltou aos olhos a relação do personagem (um homem solitário e mediano) com uma socialite, que é também um dos temas principais da trama. ATENÇÃO, CONTÉM SPOILER.

O Quarto e os valores sociais

O Quarto, dirigido por Rubem Biáfora, com Sérgio Hingst (1968)
O Quarto, dirigido por Rubem Biáfora, com Sérgio Hingst (1968)

O comportamento da socialite está em desacordo com os valores estabelecidos para a mulher daquela época, principalmente para a mulher da classe média. Fica claro, no filme, que esses valores não eram praticados pela elite do nosso país, ou pelo menos por uma parcela dessa elite. O contraste entre o personagem principal (oriundo da classe média e funcionário de repartição) e a socialite é um dos pontos fortes do filme.

É interessante o fato do filme se passar nos anos 60, um período do Brasil em que a classe média cultivava valores mais ortodoxos. Uma moça que perdia a virgindade podia “acabar com a imagem da família”, ou se a mulher solteira tivesse vários parceiros sofria preconceito. Esses valores sociais eram sacralizados, e quebrar as regras era considerado quase um atentado a Deus.

Mas no caso da socialite do filme, tudo isso era de gloriosa irrelevância. Sendo ela rica e independente, não se via obrigada a seguir as regras sociais daqueles que são obrigados a segui-las por pura necessidade, uma necessidade disfarçada de santidade. Também não seria problema algum uma aventura sexual com um homem de classe inferior por pura curiosidade ou tédio.

A indústria cultural

Adorno e Horkheimer no clássico A Indústria Cultural  afirmaram que aqueles que disseminam os valores na sociedade não seguem, eles mesmos, esses valores. A elite cultural e intelectual que dita as regras sociais não se vêem obrigados a segui-las. Fica clara a ideia de que essas regras não são “moralmente corretas” como pressupõe as classes mais baixas, mas têm uma função de regular a indústria cultural que precisa de uma pirâmide social com valores e regras estratificadas para controlar a complexa máquina social baseada no mercado e no consumo.

A moral do povo e a indústria cultural

O Quarto cinema nacional de Rubens Biáfora

Essas regras seriam parte de um esquema de domínio da indústria cultural, coerente e bem estruturada, que têm a função de manter as engrenagens de mercado em pleno funcionamento. Disfarçados de bons costumes existe apenas a dominação elaborada por uma elite que deseja manter sua posição. É simbólica a cena em que o personagem compra uns óculos caros como quem compra um ingresso para um mundo que não lhe pertence, que ele nunca terá acesso. 

O personagem principal, após mostrar inabilidade de lidar com os integrantes das classes mais altas, é solenemente dispensado pela socialite. Ele paga um alto preço por acreditar que poderia quebrar as regras, sendo despedido de sua repartição e acabando sozinho em seu quarto solitário. Para a socialite,  tudo não passou de uma aventura sem maiores consequências, pois essas regras não valiam para ela.

A solidão do homem urbano

O Quarto de Rubem Biáfora

O filme apresenta também a solidão do homem urbano, esvaziado de sentidos, solitário e sempre em busca de pequenos prazeres que preencham a agonia existencial de uma vida mecânica e monótona. O Quarto, de certa forma, antecipa a visão apresentada no filme argentino Medianeras, que a despeito da conectividade dos dias atuais, exibe ainda o mesmo tipo de homem solitário e incapaz que não consegue encontrar sentido na vida vivida nas grandes cidades.

A forma como nossas sociedades ocidentais estão organizadas faz sentido apenas para um pequeno grupo de pessoas. As demais devem vagar pelas ruas engarrafadas, produzindo, consumindo, sonhando com pequenos prazeres e vivendo uma vida inautêntica e sem sentido. Sobre tudo isso, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche afirmou que vida moderna, através desse compromisso covarde, nos tornou seres humanos doentes.

Autor: Alfredo Carneiro
Editor do netmundi.org