FILOSOFIA

Immanuel Kant e a superação da teologia

Immanuel Kant

Immanuel Kant (1724-1804) é possivelmente um dos pensadores mais importantes da história da filosofia ocidental. Kant conseguiu unir duas correntes filosóficas antagônicas, o racionalismo e o empirismo, e promoveu a “revolução copernicana na filosofia” que colocou o sujeito como participante ativo do conhecimento e não meramente sujeito passivo ou tábula rasa receptora dos sentidos.

Sua obra representa também uma ruptura com o influente pensamento da tradição medieval, uma tradição que submeteu a filosofia à teologia, a razão à fé. A Quaestio Dei de Agostinho (354-430) não pretendia eliminar a razão, pois afirmava que a razão, iluminada pela fé, assumia um aspecto superior e mais amplo que a simples razão humana. As revelações divinas contidas nos Evangelhos são, para Agostinho, um porto seguro para atravessar o mar da vida, fundamento sólido da moral e das ações do homem.

Kant, por sua vez, irá argumentar contra essa metafísica tradicional, iniciada por Platão e prosseguida pelos filósofos medievais, e tentará basear a religião e a fé em princípios de moral a priori. Para que possamos entender como se dá essa ruptura, é importante traçar algumas considerações sobre a metafísica desenvolvida pelos filósofos medievais.

Santo Agostinho

O Bem e o Uno da filosofia platônica tornam-se o Deus cristão revelado em Cristo na filosofia medieval. Agostinho reinterpreta a filosofia de Platão e lhe dá uma roupagem cristã.

Agostinho será um dos grandes responsáveis pela fusão entre as influentes ideias de Platão (mais especificamente do neoplatonismo) com o cristianismo. Isso dará prosseguimento à metafísica na filosofia medieval. O Bem e o Uno da filosofia platônica tornam-se o Deus cristão revelado em Cristo na filosofia medieval. Agostinho reinterpreta a filosofia de Platão e lhe dá uma roupagem cristã. Em sua obra Confissões, o filósofo medieval acredita que os neoplatônicos não reconheceram o Sumo Bem encarnado em Cristo.

[...] deparaste-me por intermédio de certo homem, intumescido por monstruoso orgulho, alguns livros platônicos, traduzidos do grego em latim.[...] A alma do homem, ainda que dê testemunho da Luz, não é, porém, a Luz; mas o Verbo — Deus —  é a Luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo. Estava neste mundo que foi feito por Ele, e o mundo não o conheceu. Porém, que veio para o que era seu e os seus não o receberam; que a todos os que o receberam lhes deu poder de fazerem filhos de Deus aos que crescessem em seu nome — Isso não li naqueles livros. (AGOSTINHO, 1973, p.137)

Tomás de Aquino (1225-1274), quase mil anos após Agostinho, irá defender que razão e fé podem ser independentes, entretanto, são dois caminhos distintos que levam a Deus. Desta forma, a metafísica ocupa, nos pensadores medievais, papel fundamental. Tanto em Tomás de Aquino quanto em Agostinho está implícita também a ideia de que a razão pode conhecer os objetos transcendentais, e a palavra de Deus revelada nas escrituras seria o mais seguro caminho para atravessar o “mar da vida” ou direcionar as ações humanas.

Ai de ti, torrente dos hábitos humanos! Quem te resistirá? Até quando hás de correr sem te secar? Até quando rolarás os filhos de Eva para o mar profundo e temeroso, somente atravessado pelos que se embarcam no lenho da cruz? (AGOSTINHO, 1973, p.37).

O Empirismo Britânico

Contudo, na fervilhante Europa do século XVIII, os grandes representantes do empirismo, como John Locke e David Hume, iniciaram uma corrente materialista que entendia a mente humana como uma folha de papel em branco onde a experiência escreve ao acaso. John Locke defendia que “não existe conhecimento algum na mente que não houvesse passado pelos sentidos” e Hume irá declarar que a alma não é mais que um conjunto de memórias, percepções e sentimentos oriundos da experiência empírica. A mente nasce sem ideias inatas. É uma folha em branco ou tábula rasa.

John Locke (1632 - 1704)

John Locke (1632 – 1704)

Para os empiristas, não existem ideias a priori. Na verdade, sequer existe algo como “mente” ou “alma”. Ao contrário do que afirmaram a filosofia desde Platão até os filósofos medievais e até mesmo Descartes na filosofia moderna, no empirismo não existem ideias inatas como Deus, certo e errado, ou qualquer outro conhecimento inerente à mente que anteceda a experiência. A ideia platônica de que o corpo é o túmulo de uma alma decaída capaz de lembrar das ideias perfeitas não passaria de uma metáfora extravagante.

David Hume (1711 - 1776)

David Hume (1711 – 1776)

Muito menos, como queriam os teólogos medievais, pode Deus inspirar o homem ou ditar sagradas escrituras. Ou, como sugeria Agostinho, que a memória continha a lembrança inata de coisas transcendentais. A corrente empirista praticamente destrói a metafísica e todas as esperanças de uma fé religiosa. O homem seria apenas um amontoado de sensações e memórias. Não existe nada no entendimento humano que não seja oriundo da relação desordenada do homem com o mundo material.

Immanuel Kant e os limites da razão

Immanuel Kant, por sua vez, irá discorrer mais claramente sobre os limites da razão e a impossibilidade do homem demonstrar, pela razão, os mais caros objetos da teologia. Em suma, Kant também irá concluir pela impossibilidade da metafísica como ciência.

Com isso, a teologia irá sofrer mais um ataque, afinal, as bases da teologia tradicional são colocadas por Kant como inseguras e frágeis, baseadas em uma metafísica especulativa incapaz de dar um suporte às ações do homem. Kant irá propor, como base para a fé, um senso moral inato ao homem que ele irá chamar de imperativo categórico, que por sua vez é baseado na “razão pura” que independe dos sentidos.

Enfim, contra os empiristas, Kant afirma que o homem possui conhecimentos a priori na mente, que ele chamou de “razão pura”. O título de sua obra máxima, a Crítica da Razão Pura, nos informa que Kant fará uma análise (uma crítica) desta “razão pura”.

immanuel Kant

Contra os empiristas, Kant afirma que o homem possui conhecimentos a priori na mente, que ele chamou de “razão pura”. O título de sua obra máxima, a Crítica da Razão Pura, nos informa que Kant fará uma análise (uma crítica) desta “razão pura”.

A fé, portanto, deve se basear na moral e na “razão pura”, e não mais em uma razão falível. Ao contrário da razão baseada nos sentidos (descrita pelos empiristas), a “razão pura” é inata e antecede a experiência empírica. Essa razão inata, a priori, é uma das grandes contribuições filosóficas de Kant, e que não foi percebida por David Hume. Com isso Kant irá sintetizar racionalismo e o empirismo, além de demonstrar a fragilidade da argumentação dos empiristas. Então, ao contrário dos que afirmavam os empiristas, Kant afirma que o homem possui de fato ideias inatas que antecedem a experiência e organizam as sensações empíricas, exercendo um papel ativo no conhecimento.

Contudo, e apesar da razão pura, para Immanuel Kant não é possível ao homem pensar sobre aquilo que esteja fora do espaço e do tempo. Deus e a alma livre e imortal do homem nunca poderão ser demonstrados pela razão, como queria Platão e Aristóteles, os filósofos medievais e até mesmo René Descartes (um dos mais importantes filósofos do racionalismo). Qualquer ciência que queira superar da experiência sensível não é algo possível ao homem e sequer pode ser chamada de ciência. O homem só pode concluir pela existência das coisas que estão no espaço e no tempo.

Espaço e tempo existem apenas na mente

Inicialmente, isso parece fazer de Kant um empirista que compreende o homem como tábula rasa passiva. Porém Kant conclui, também, que existe uma participação a priori no sujeito e, de forma surpreendente, afirma que espaço e tempo não são “coisas percebidas pelo homem”, mas “modos de percepção” inatos do homem, formas a priori de dar sentido à experiência. Espaço e tempo não são coisas que existem “lá fora”, mas “dentro” da mente do homem.

Kant, com isso, conclui também pela existência da mente (ao contrário do que afirmavam os empiristas). Ela não é um “órgão” que recebe os dados empíricos, sem qualquer ordenação. Se Hume percebeu que quando olhamos a lua recebemos um feixe de sensações, não percebeu que a mente trabalha ativamente na ordenação dessas sensações para que se apresente uma imagem trabalhada da lua para mim. Esse resultado do trabalho da mente Kant irá chamar de fenômeno. A mente reúne, filtra, compara e classifica ativamente a experiência empírica, transformando-os em fenômenos. Não conhecemos a realidade de fato, mas a realidade conforme a mente nos apresente.

Podemos afirmar que todos os nossos conhecimentos têm origem em nossa experiência. Afinal, por meio de que a faculdade do conhecimento deveria ser exercitada, senão por objetos que tocam nossos sentidos e em parte produzem por si mesmos representações, em parte põe em movimento a atividade de nosso conhecimento para compará-las, reuni-las ou separá-las e, dessa maneira, proceder à elaboração da matéria informe das impressões sensíveis até um conhecimento das coisas, ao qual denominamos experiência? Portanto, nenhum conhecimento antecede no tempo a experiência; todos começam por ela. (KANT, 2009, p.13).

A “verdadeira realidade” é inacessível ao homem

O fenômeno implica outro conceito revolucionário de Kant: a coisa-em-si ou númeno. Se aquilo que percebemos é o fenômeno, então, o que é a realidade além dos fenômenos? Essa realidade é a coisa-em-si. Contudo, ela é inacessível ao homem, que apenas pode perceber as coisas por intermédio da atividade da mente que filtra, ordena a coisa-em-si e nos apresenta os fenômenos.

Coisa-em-si e fenômenos são distintos e, segundo o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), essa distinção é um dos maiores méritos de Kant. Isso significa também que a ciência, de forma ingênua, não está lidando com a realidade, mas com a realidade conforme se apresenta para o homem, os fenômenos. Desde sempre o homem acreditou que estava tratando diretamente com a realidade, mas Immanuel Kant desenvolveu uma filosofia (mais especificamente uma epistemologia) que declara que nunca o homem lidou diretamente com a realidade.

Não apenas espaço e tempo são formas a priori que estão, na verdade, “dentro” do homem. Kant irá falar de outras categorias a priori que trabalham ativamente na ordenação da realidade para que se apresentem a nós os fenômenos. Categorias como unidade, totalidade, causalidade, entre outras, compõe a estrutura a priori da mente. Kant chamou essas estruturas de transcendentais, pois, transcendem a experiência empírica (independem dos sentidos). Enfim, o mundo como conhecemos é uma construção de nossa mente.

(...) O mundo como nós o conhecemos é uma construção, um produto retocado, quase que se poderia dizer um artigo manufaturado, para o qual a mente, pelas suas formas modeladoras, contribui tanto quanto contribui a coisa pelos estímulos. (Assim, percebemos o topo da mesa como sendo redondo, enquanto que nossa sensação é de uma elipse). O objeto como ele parece a nós é um fenômeno, uma aparência, talvez muito diferente do objeto externo antes de estar dentro do alcance de nossos sentidos; o que o objeto original era, nunca podemos saber: a “coisa-em-si” pode ser um objeto do pensamento ou uma inferência (um “número”), mas não pode ser experimentada, pois ao ser experimentada seria transformada pela passagem através dos sentidos e do pensamento. (DURANT,1963, pp 48-49)

Depois discorrer sobre as estruturas transcendentais da mente, sobre os fenômenos e sobre a impossibilidade do homem conhecer a coisa em si, fica evidente que as esperanças da ciência ou da religião de falar sobre a “verdadeira realidade”, ou de “mundos espirituais”, não passam mera hipótese. Posso falar sobre essas coisas, pensar essas coisas, mas não posso conhecer essas coisas.

Existe, na filosofia de Kant, um eu transcendental no sentido de transcender a experiência e produzir os fenômenos (o mundo como se apresenta para mim). Mas não pode existir uma “ciência transcendental” que, através da razão, ultrapasse a experiência empírica e nos apresente Deus ou o “as causas primeiras”, como queriam Platão e os filósofos medievais. A razão não pode evadir-se da experiência empírica e dos fenômenos. Se a ciência e a religião não perceberem que tempo, espaço e causa são categorias a priori da mente, e não “coisas lá fora”, poderão apenas gerar falsos dilemas e raciocínios falhos. A função da filosofia de Kant é não permitir essas extravagancias que pretendem superar a experiência empírica.

Mas, ao contrário dos céticos empiristas, Kant não pretendia destruir a religião e a ciência. Pelo contrário, pretendia “salvá-las” e colocá-las em uma base mais sólida e estável. A metafísica tradicional, até então, falhou em se firmar como um conhecimento sólido. Essa razão de que falam os filósofos metafísicos serve apenas para tratar com os fenômenos, ela pode direcionar as coisas práticas de nossa vida, mas não pode ser fundamento das ações humanas, enfim, da moral e da ética.

A ética de Immanuel Kant

Segundo Kant, a religião e a fé não podem se basear na teologia ou na razão. Elas devem se basear na razão pura, que antecede os sentidos, pois a base moral de nossas ações deve ser inata, absoluta e livre de falsas interpretações. Precisamos de uma ética universal baseada em percepções diretas, em sensações de certo e errado absolutas a priori, ou seja, precisamos nos basear no imperativo categórico que é, antes de tudo, a percepção inevitável de que tal ação é certa ou errada.

O imperativo categórico é algo dentro de nós que nos ordena a agir como se nossa ação pudesse tornar-se lei para todos os homens.  Não é a razão ou a fé que nos informa que uma determinada ação seja correta, mas uma percepção direta e inata, e nada mais. Essa percepção é transcendental, pois é oriunda de uma razão pura que transcende a experiência empírica. Posso roubar e matar, como fazem tantas pessoas, mas a sensação a priori de que agi da forma errada estará lá. Desta forma, a razão pura é também uma razão prática.

Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer sempre como princípio de uma legislação universal (KANT, 2003, p.40).
A razão pura é por si mesma prática, e dá (ao homem) uma lei universal que denominamos lei moral [Sittengesetz]. (KANT, 2003, p.41).
Com efeito, a razão pura, prática em si mesma, aqui resulta imediatamente legisladora. A vontade é concebida como independente de condições empíricas e, consequentemente, como vontade pura, determinada pela simples forma da lei, sendo esse motivo de determinação considerado como a suprema condição de todas as máximas. (KANT, 2003, pp 40-41).

Portanto, a lei moral dentro de nós é incondicional e absoluta, é um imperativo categórico. Desta forma, essa lei inata pode ser a base segura das ações humanas, uma vez que está fora do alcance dos julgamentos falhos da razão e da metafísica tradicional. Assim, Immanuel Kant rompe com a metafísica tradicional, tão valorizada pelos pensadores medievais e base da filosofa ocidental desde Platão.

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Se a religião não pode ser baseada na ciência e na teologia, no que mais poderá ser? Na moral. A base na teologia é insegura demais; é melhor que seja abandonada, até mesmo destruída; a fé tem de ser colocada além do alcance ou domínio da razão. Mas, consequentemente, a base moral da religião tem de ser absoluta, não pode ser derivada de experiências passíveis de dúvidas ou inferências precárias; nem corrompida pela mistura com a razão falível; ela tem de ser derivada do ser interior pela intuição e percepção direta. (DURANT, 1965, pp. 55-56)

Portanto, não é a razão precária que nos guia em nossas ações, mas a sensação intensa e imediata que nos informa que, se o meu comportamento incorreto for assumido por todos os homens, a vida em sociedade, e talvez até a vida humana, se tornará inviável.

A boa ação não é aquela que colhe bons resultados, mas aquela que está em conformidade com o imperativo categórico. Não devemos nos preocupar em ser felizes, mas em cumprir nosso dever. A única coisa verdadeiramente boa é a vontade de seguir essa lei moral dentro de nós, quer ela nos traga felicidade ou tristeza.

Immanuel Kant

Isso implica, por sua vez, na liberdade e até mesmo a conclusão pela existência de Deus (o que não significa aceitar a metafísica tradicional). Se eu me sinto livre para decidir por uma ação que contradiga o imperativo categórico, isso pressupõe a liberdade de escolher. É o dilema moral que, por si só, pressupõe a liberdade.

E de onde viria esta sensação, além de minha compreensão, que me informa o que é certo e o que é errado? Provém de um Ser que, por si só, pressupõe a justiça e a liberdade, ou seja, Deus. Desta forma Kant completa sua epistemologia e, por conseguinte, sua filosofia moral. Mas essa afirmação final de Deus em Kant é contrária ao Deus revelado das escrituras, e sua filosofia acaba se opondo radicalmente contra a teologia.

Obviamente, esse rompimento com a teologia e essa “destruição de Deus” (ou pelo menos do Deus como entendem as religiões), sofreu represálias e, finalmente, em 1792 recebeu do gabinete do Rei da Prússia um comunicado informando que o Rei “teve o desprazer de constatar de Kant faz mau uso de sua filosofia ao atacar as Sagradas Escrituras e a doutrina cristã”. Cobrou explicações e pediu para que empregue melhor sua autoridade e sabedoria. Desde então, Immanuel Kant não publicou mais nada. Mas sua produção filosófica acabou por tornar-se uma das mais importantes da história do pensamento ocidental.

AutorAlfredo Carneiro – Graduado em Filosofia e pós-graduado em Filosofia e Existência pela Universidade Católica de Brasília.

Referências Bibliográficas

  • KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Martin Claret, 2009.
  • KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática.  São Paulo: Martin Claret, 2003.
  • DURANT, Will. A Filosofia de Immanuel Kant. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1965.