FILOSOFIA

David Hume: principais ideias, frases e obras

David Hume

Da tradição empirista britânica dos séculos XVII e XVIII, David Hume é com certeza o mais influente dos filósofos. Suas ideias exerceram uma força atrativa enorme na filosofia contemporânea. David Hume nasceu em Edinburgo, Escócia, em 1711 e lá também morreu em 1776. Desde cedo, manifestou interesse pela literatura e pela filosofia, embora sua família o destinasse à carreira jurídica. Aos 23 anos, Hume vai para a França, com a intenção de perseguir uma carreira literária. Lá, onde fica até 1737, escreve sua primeira obra filosófica, o Tratado da Natureza Humana, que publica em 1739, com apenas 28 anos.

A obra, longa e ambiciosa, não desperta qualquer interesse na comunidade literário-filosófica, frustrando as pretensões de Hume. A fama literária só veio anos mais tarde, quando publica, em 1741, seus Ensaios morais e políticos. Em 1751, publica dois livros que retomam partes do Tratado de 1739: a Investigação sobre o entendimento humano e a Investigação sobre os princípios da moral.

Sua fama literária aumenta nos anos seguintes, com a publicação de seus Discursos políticos, em 1752, e dos volumes dedicados à História da Inglaterra, que começa a publicar em 1756.

Hume coroa a evolução do empirismo moderno, construindo, com sua filosofia, uma verdadeira alternativa ao racionalismo que predominava na filosofia européia continental. Mais do que Locke, é Hume quem permaneceu como referência da tradição empirista na filosofia moderna.

De fato, até hoje seus argumentos são objeto de discussão e muitas de suas teses ainda são largamente aceitas e defendidas. Hume ainda é um tipo de filósofo cujas ideias ainda podemos filosofar. Contudo, é frequente vermos a filosofia de Hume ser caracterizada como uma filosofia cética. Para que não ocorram enganos quanto a isso, vejamos a participação do ceticismo em sua filosofia.

O ceticismo moderado de David Hume


Ceticismo David Hume

O próprio Hume, aliás, apresentava sua filosofia como uma espécie de ceticismo – mas é preciso entender bem essa alegação para que não cometamos uma injustiça. O ceticismo, genericamente, pode ser caracterizado como uma posição filosófica que defende a suspensão do juízo diante da impossibilidade de fixarmos critérios claros para distinguir o verdadeiro do falso.

Ou seja, dado que não temos como determinar quais de nossas crenças são verdadeiras e quais são falsas (ou, alternativamente, quais delas estão justificadas e quais não estão), o melhor é simplesmente abster-se de afirmar ou negar qualquer coisa.

Essa posição, tomada ao pé da letra, diz Hume, é insustentável: quer queiramos ou não, tomamos posição, afirmamos ou negamos diversas coisas – do contrário, simplesmente não seríamos capazes de agir, e, se não formos capazes de agir, simplesmente perecemos. Em contraste com esse ceticismo generalizado, podemos ser céticos com relação a algumas coisas e não a outras.

Alguns são céticos religiosos: não acreditam que nossas crenças religiosas possam encontrar uma justificação. Outros são céticos morais, não acreditando que nossas crenças morais possam ser verdadeiras ou falsas. O ceticismo de Hume está voltado, sobretudo, para a metafísica, no seu sentido tradicional, cultivado ainda pelos filósofos racionalistas: Hume não crê que seja possível justificar, à maneira dos racionalistas, as crenças metafísicas tradicionais.

Hume se esforça para mostrar que seu ceticismo é moderado. Sua posição está baseada em dois pilares fundamentais: a observação cuidadosa dos limites do entendimento humano e a primazia do hábito como condutor de nossas vidas.

O grande erro dos racionalistas, segundo Hume, é desconhecer os limites que encerram nossa razão, confiando excessivamente na sua capacidade de gerar conhecimento e produzir certeza puramente baseado na lógica, ou seja, se um argumento logicamente faz sentido, então é verdadeiro e racional. Esta é a base, por exemplo, das comprovações racionais da existência de Deus entre os racionalistas e mesmo antes deles com os filósofos cristãos medievais.

Quando essa esperança se mostra infundada, o resultado inevitável é exatamente o ceticismo: frustrados, aqueles que depositaram na razão suas esperanças acabam caindo justamente no ceticismo que queriam evitar. Um guia mais confiável é a própria natureza humana, com seus princípios que nos inclinam a assumir uma série de posições e aceitar uma série de crenças indispensáveis para nossa vida.

O ceticismo moderado de Hume, assim, vem associado a uma visão eminentemente naturalista do ser humano. Construir uma ciência da natureza humana, aliás, é o grande projeto que Hume se propõe realizar.

David Hume e a natureza do conhecimento


Locke: Ideias simples e ideias complexas

Hume aceita, como ponto de partida, o postulado empirista básico: “todos os materiais do pensamento derivam da sensação interna ou externa”. Hume chama a esses “materiais do pensamento”, genericamente, de percepções.

As percepções, por sua vez, dividem-se em impressões e ideias. A diferença entre elas é, basicamente, uma diferença de força ou vivacidade: impressões são mais fortes ou vivazes do que as ideias.

Pelo termo impressão, entendo todas as nossas percepções mais vivazes, quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou queremos. E as impressões se distinguem das ideias, que são as impressões menos vivazes das quais temos consciência quando refletimos sobre qualquer dessas sensações ou movimentos acima mencionados. (BERKELEY & HUME, 1980, P. 140).

Assim, quando percebemos uma maçã, temos uma determinada impressão; quando nos lembramos ou, em geral, pensamos na maçã (sem estar em sua presença, por assim dizer), temos uma determinada ideia.

Essa distinção entre impressões e ideias permite a Hume dar uma versão mais precisa do postulado empirista: o que ele quer dizer é que todas as nossas ideias têm origem em impressões anteriores.

Isso sugere também uma espécie de “método”: devemos proceder de modo a examinar nossas ideias em busca das impressões de que derivam. Caso não encontremos a impressão original, é porque a ideia é vazia, e deve ser descartada. O próprio Hume faz referência constante a esse “método”, e assim termina sua Investigação sobre o entendimento humano:

Se tomamos nas mãos um volume qualquer de Teologia ou de Metafísica escolástica, por exemplo, perguntemos: Este livro contém algum raciocínio abstrato sobre quantidade ou número? Não. Contém algum raciocínio sobre questões de fato ou de existência? Não. Para o fogo com ele, pois outra coisa não pode encerrar senão sofismas e ilusões. (BERKELEY & HUME, 1980, p. 204).

Essa passagem faz referência a uma distinção complementar que é de suma importância para o pensamento de Hume, embora não tenha sido ele originalmente seu inventor: estamos nos referindo à distinção entre dois tipos de conhecimento, o que diz respeito a relações de ideias e o que se reporta a questões de fato (essa distinção, de fato, já se encontra na discussão que Leibniz faz das ideias de Locke).

Relações de Ideias


Matemática

Ao tipo de conhecimento que chama de relações de ideias pertencem, diz Hume, a matemática e a lógica: “numa palavra, toda afirmação que seja intuitivamente ou demonstrativamente certa”. Essas disciplinas, na caracterização de Hume, ocupam-se exclusivamente em estabelecer relações entre determinadas ideias.

Tomando os exemplos do próprio Hume; “que o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos dois lados é uma proposição que expressa uma relação entre essas figuras. Que três vezes cinco é igual à metade de trinta expressa uma relação entre esses números”.

Ou seja, essas proposições apenas esclarecem ou desdobram o significados dos termos que designam as ideias de “triângulo retângulo”, “hipotenusa”, “soma”, “quadrado”, “três”, “vezes”, “cinco”, etc.

Dado o significado desses termos, podemos estabelecer as relações expressas naquelas proposições. Duas características dessas afirmações devem ser destacadas.

Primeiro, elas implicam uma necessidade forte: dadas as ideias de “três”, da operação de multiplicação, de “cinco”, de “metade” e de “trinta”, então é absolutamente necessário que “três vezes cinco” seja igual à “metade de trinta”.

As conclusões a que chegamos, relacionando ideias dessa maneira, portanto, são absolutamente certas e necessárias.

No entanto, e essa é a segunda característica que destacamos, são também vazias: quando dizemos metade de trinta” não dizemos nada que já não estivesse dito em “três vezes cinco”. A necessidade da proposição está ancorada, no final das contas, na identidade entre “três vezes cinco” e “metade de trinta”.

Hume observa ainda que as relações de ideias podem ser descobertas por simples operação do pensamento.

Questões de Fato


Baruch Espinosa

As proposições referentes a questões de fato, diz Hume, “não são verificadas da mesma forma”. Proposições desse tipo relacionam não duas ideias, mas dois fatos ou eventos.

Ao contrário da relação entre ideias, no entanto, a relação entre dois fatos ou eventos não pode ser descoberta pelo puro pensamento: é necessário que a experiência intervenha para que a relação seja estabelecida.

Quando é estabelecida a relação, ganhamos um novo conhecimento (aumentamos nosso conhecimento do mundo). Em compensação, perdemos aquela necessidade forte que caracteriza as relações de ideias: o contrário de uma questão de fato, diz Hume, é sempre (logicamente) possível. Ele diz:

“Que o sol não nascerá amanhã é tão contraditório quanto afirmar que o sol nascerá amanhã” (BERKELEY & HUME, 1980, pp. 143-144).

As proposições que articulam relações de ideias estão, finalmente, baseadas no princípio da contradição. Elas tiram sua certeza do fato de que é impossível, sob pena de cair em contradição, pensar o contrário do que afirmam, quando são verdadeiras. E as proposições que se referem a questões de fato? Em que se baseiam? A resposta de Hume é que se baseiam exclusivamente na experiência.

Agora, o que a experiência nos dá? Para Hume, a experiência nos dá apenas eventos particulares isolados. Nossas ideias, originadas na experiência, vão ser, também, existências isoladas, particulares. Hume aceita, em suas linhas gerais, a crítica que faz Berkeley das ideias abstratas. Ele diz no Tratado da natureza humana, no capítulo em que trata das ideias abstratas:

Um grande filósofo (Hume está se referindo a George Berkeley) contestou a opinião tradicional acerca desse ponto, afirmando que as ideias gerais não passam de ideias particulares que vinculamos a um certo termo, termo este que lhes dá um significado mais extenso e que, quando a ocasião o exige, faz que evoquem outros indivíduos semelhantes a elas. Considero esta descoberta uma das maiores e mais valiosas feitas recentemente na república das letras. (HUME, 2001, p. 41).

Temos, portanto, que todas as nossas ideias provêm de impressões anteriores. Impressões são o que temos quando temos experiência de algo. E a experiência nos dá apenas existências isoladas. Vejamos agora o resultado da aplicação desse conjunto de teses a duas ideias fundamentais: a ideia de causa e a ideia de eu.

Causalidade


David Hume Causa e efeito

A ideia de causa é uma das ideias fundamentais, tanto da metafísica quanto da ciência. Pôr em questão essa ideia, portanto, implica atingir no coração esses dois domínios. Vimos que, para o projeto racionalista, tal como formulado originalmente por Descartes, o papel primordial da filosofia, após o advento da ciência moderna, é o de colocar a ciência sobre bases metafísicas sólidas.

Ao visar um conceito tão fundamental quanto o de causa, é todo o projeto racionalista que se será questionado. A nossa ideia corrente de causa, diz Hume, reduz-se à ideia de conexão necessária. A questão que se impõe é saber de que impressão deriva tal ideia. Vale a pena lembrar ainda que, na tradição racionalista, havia uma tendência a identificar a relação causal com a conexão lógica que existe, por exemplo, entre as premissas e a conclusão de um argumento.

A razão, para os racionalistas, é capaz de conhecer a relação entre dois eventos ou fatos da mesma forma como é capaz de apreender a relação de necessidade entre as premissas e a conclusão de um argumento. Assim, não há uma diferença significativa entre o tipo de necessidade na relação entre um evento, como causa, e outro, como seu efeito, e entre um conjunto de proposições em um argumento. A necessidade da conexão entre os termos relacionados, nos dois casos, é a mesma.

Hume começa, justamente, negando isso. Para ele, existe uma diferença clara entre dois tipos de conhecimento – relações de ideias e questões de fato – e uma das diferenças fundamentais é a de que, no primeiro caso, temos necessidade rigorosa (baseada no princípio de contradição), enquanto que, no segundo (baseado na experiência), isso não ocorre.

Se é assim, de onde pode vir nossa ideia de conexão necessária? Ela não pode ser derivada de uma impressão, ou seja, da experiência da conexão necessária, dado que não existe tal impressão. Em que baseamos, por exemplo, nossa afirmação de que “o sol esquenta a pedra”? Será que a baseamos no fato de que minha razão, examinando o conceito ou a “essência” do sol, descobre que o sol necessariamente é calorífico?

Hume nega isso frontalmente: para descobrir os efeitos de algo precisamos da experiência; não temos acesso aos pretensos “poderes secretos” que constituem a essência real das coisas.

Nossa afirmação, portanto, está baseada unicamente na experiência. Mas o que me dá a experiência? Ela me dá apenas as impressões associadas à ideia de “sol” e as impressões ligadas à ideia de “pedra quente”. Não há nada na experiência que corresponda à ideia de “causa”. Temos aí três termos: “sol”, “causa”, “pedra quente”. A experiência me dá apenas dois desses termos (“sol” e “pedra quente”).

De onde vem o terceiro (“causa”)? Não pode vir da razão, visto que a razão só é capaz de estabelecer relações dedutivas, que são, fundamentalmente, tautológicas (apenas desdobram as relações entre as ideias). A razão é capaz apenas, por exemplo, de estabelecer uma relação entre “três vezes cinco” e “metade de trinta” simplesmente porque esses dois termos são idênticos.

Agora, entre dois termos distintos, como os dados pela experiência (“sol” e “pedra quente”), a razão sozinha não pode estabelecer nenhuma relação. A experiência, no entanto, me dá uma outra coisa também. Eu percebo que, sempre que encontrei uma pedra exposta ao sol por um longo tempo, ela estava quente, ou que, sempre que coloquei uma pedra sob o sol, ela esquentou.

É essa conjunção constante entre os dois eventos que, para Hume, nos leva a passar de um a outro e esperar, quando observamos um (colocar a pedra no sol), que o outro (a pedra esquenta) logo seja também observado.

A passagem da causa para o efeito não é uma inferência racional (como parecem sugerir os racionalistas), mas apenas um efeito do hábito ou do costume de encontrar sempre dois eventos constantemente ligados. Nossa ideia de causa, portanto, se bem entendida, não corresponde à ideia de conexão lógica e necessária, mas à de conjunção constante.

Veja que Hume não quer negar que tenhamos uma ideia de causa nem que ela seja importante. Quer apenas negar que essa relação entre causa e efeito seja caracterizada como um fundamento racional. Hume é o primeiro a admitir que a capacidade de reconhecer ou estabelecer relações causais é fundamental para a própria sobrevivência da humanidade: é impossível nos abstermos de estabelecer essas conexões entre eventos.

Não quer, portanto, que suspendamos nosso juízo e paremos de tentar estabelecer relações causais. Apenas quer colocar nosso conhecimento dessa relação no seu devido fundamento: o hábito ou o costume, entendido como um princípio da natureza humana, e não a razão, entendida à maneira dos racionalistas. Sua conclusão é, em certo sentido, cética, de fato.

Mas seu ceticismo é localizado: visa apenas desqualificar as especulações racionalistas, não o nosso conhecimento, de um modo geral. Em conexão com essa análise da ideia de causa, Hume vai levantar um outro problema, que veio a ser conhecido como o “problema da indução”.

O problema da Indução


David Hume Sol

Tradicionalmente, aceita-se que há três maneiras como uma proposição pode ser certa: ela pode ser imediatamente ou intuitivamente certa (seria esse o caso daproposição A = A ); ou ela pode ser dedutivamente certa, como no caso das proposições matemáticas ou lógicas; ou elas podem ser indutivamente certas, quando chegamos a elas a partir da observação repetida de casos particulares, formulando determinadas generalizações, que exprimem regularidades.

A indução é o processo que nos permite, portanto, fazer generalizações e previsões. Minha observação costumeira, desde que eu tenho memória de que o sol nasce todos os dias pela manhã, me leva a afirmar que o sol sempre nasce de manhã (o que é uma generalização, exprimindo uma regularidade natural) ou que o sol nascerá amanhã (o que é uma previsão). A capacidade de fazer generalizações e previsões é, naturalmente, essencial à ciência.

O problema é que, nesse processo, parece que algo misterioso está envolvido. A experiência, ela própria, não é suficiente para fundamentar essa passagem do particular para o geral – porque, afinal, só temos experiência do particular. Da mesma forma, ela não é suficiente para fundamentar a inferência do passado para o futuro – porque, afinal, só temos experiência do presente (e a memória das experiências passadas).

Hume sugere que a passagem das observações reiteradas do passado para a generalização ou para o futuro só é possível se houver um “termo médio”. Para passar de (1) “Em cada dia de que tenho memória, o Sol sempre nasceu de manhã” para (3) “Logo, o Sol sempre nasce de manhã” (que é uma generalização) ou (3’) “Logo, amanhã de manhã o Sol nascerá” (que é uma predição), preciso de uma premissa intermediária, que está implícita: (2) O futuro será igual ao passado, ou então, se quisermos, a natureza é uniforme.

O problema, segundo Hume, é que essa segunda premissa não é intuitivamente certa nem é passível de demonstração racional pelos dois processos de raciocínio que nos estão disponíveis (dedução e indução). Não é dedutivamente certa porque diz respeito, afinal de contas, a uma questão de fato (ela não articula uma simples relação de idéias). Nem pode ser indutivamente certa – porque, afinal, estamos fazendo referência a ela para, justamente, justificar a indução.

A passagem do particular para o geral, que fazemos quando generalizamos ou fazemos predições, não está fundada na razão, mas no costume – que é, no final das contas, o resumo de todas as nossas experiências. A ideia de que o costume é que define nossas bases do conhecimento está totalmente contra a ideia de necessidade lógica, que fundamenta o projeto racionalista.

Mente e identidade pessoal


David Hume Conhecimento

A segunda ideia a que aludiremos para ilustrar a aplicação do método de Hume e seus efeitos é a ideia de eu. O problema da identidade pessoal já havia sido introduzido como tema importante na filosofia por John Locke, que trata longamente dele no seu Ensaio sobre o Entendimento Humano.

O problema da identidade pessoal diz respeito, em última análise, aos critérios que nós temos para aplicar o conceito de “pessoa” – em particular, para identificar, ao longo do tempo, o mesmo indivíduo como sendo a mesma pessoa.

Hume trata do problema da identidade pessoal em seu Tratado da Natureza Humana. O argumento começa com a apresentação de uma concepção genérica de eu (ou self, em inglês), que reúne algumas qualidades que Hume quer problematizar:

Há filósofos que imaginam estarmos, em todos os momentos, intimamente conscientes daquilo que denominamos EU; que sentimos sua existência e a continuidade de sua existência; e que estamos certos de sua perfeita identidade e simplicidade, com uma evidência que ultrapassa a de uma demonstração. (HUME, 2001, p. 284).

Note que, embora não haja, nessa passagem, nenhuma referência direta ao nome de Descartes, a ideia cartesiana do eu como “coisa pensante” se enquadra, em linhas gerais, na caracterização de Hume. O eu, segundo essa caracterização, é algo de que estamos a todo tempo conscientes, que sabemos existir e perdurar ao longo do tempo de forma contínua, de que estamos certos de sua simplicidade em um momento determinado (simples significa sem partes, que não é composto) e de sua identidade ao longo de momentos diferentes.

Essa caracterização implica que isso que chamamos eu é pensado como uma substância, isto é, como algo que subsiste por si mesmo, de forma independente, e que é, em si mesmo, uma espécie de substrato, de base onde se passa o pensamento. O eu, segundo essa caracterização, é algo diferente de nossos pensamentos – é, na verdade, aquilo a que nossos diversos pensamentos se referem.

A questão que Hume se coloca, fiel a seu método, é: de onde (ou seja, de que impressão) derivamos essa ideia de eu? Hume diz:

Quando penetro mais intimamente naquilo que denomino meu eu, sempre deparo com uma ou outra percepção particular, de calor ou frio, luz ou sombra, amor ou ódio, dor ou prazer. Nunca apreendo a mim mesmo, em momento algum, sem uma percepção, e nunca consigo observar nada que não seja uma percepção. (HUME, 2001, p. 284).

Ou seja: quando fazemos uma introspecção em busca de apreender o que chamamos de eu, o que encontramos é o fluxo de nosso pensamento, mas nada que tenha aquela simplicidade e identidade que associamos ao eu.

Encontramos o pensamento, na sua diversidade, complexidade e mutabilidade, mas não um suposto substrato onde se passaria esse pensamento. Em determinada altura do texto, Hume compara nossa mente a um teatro, tomando o cuidado de lembrar que se trata de uma comparação enganosa, já que a mente é como um teatro sem palco.

Poderíamos modernizar a analogia, comparando a mente a um cinema, mas um cinema sem tela e sem tela. Diante da impossibilidade de encontrar essa coisa simples e contínua a que chamamos eu, Hume propõe uma conclusão que pode soar desconcertante:

As pessoas (ou os eus) “não são senão um feixe ou uma coleção de diferentes percepções, que se sucedem umas às outras com uma rapidez inconcebível, e estão em perpétuo fluxo e movimento” (ibid., p. 285).

Mais adiante, no texto, Hume faz uma comparação curiosa da mente com uma república ou comunidade; em todo caso, o que ele parece querer sugerir é que a mente é algo que possui apenas uma unidade construída, como construímos uma coleção, juntando diversas coisas ou como constituímos uma república ou sociedade política, juntando politicamente, diversas pessoas.

Mas mesmo que não haja um eu que seja como uma coisa (ainda que uma coisa pensante) ou um substrato no qual se passa o pensamento, ainda assim temos uma ideia de eu como simples e idêntico. Mesmo que na mente não haja simplicidade nem identidade, temos uma propensão natural a imaginar essa identidade (esse eu).

Hume vai tentar, então, explicar como chegamos a essa ideia. Sua resposta consiste em mostrar que “todos os objetos a que atribuímos identidade são constituídos por uma sucessão de objetos relacionados”. Com relação especificamente ao problema da identidade pessoal, Hume começa dizendo que não há uma diferença substancial entre ele e o problema posto, em geral, pela ideia de identidade:

A identidade que atribuímos à mente humana é apenas fictícia, e de um tipo semelhante à que atribuímos a vegetais e corpos animais. Não pode, portanto, ter uma origem diferente, devendo, ao contrário, proceder de uma operação semelhante da imaginação sobre objetos semelhantes. (HUME, 2001, p. 291).

Hume pergunta: o que é a relação de identidade? Será “algo que realmente vincula nossas diversas percepções ou apenas associa suas idéias na imaginação?” A resposta segue a linha da resposta que deu ao problema da conexão necessária — o problema da relação de causa e efeito, na base das previsões e generalizações que fazemos. Sua resposta:

Assim como “o entendimento nunca observa uma conexão real entre objetos”; assim como “mesmo a união de causa e efeito, quando rigorosamente examinada, reduz-se a uma associação habitual de ideias”, da mesma forma “a identidade não é alguma coisa que pertença realmente a essas diferentes percepções e que as una umas às outras; é apenas uma qualidade que lhes atribuímos quando refletimos sobre elas, em virtude da união de suas ideias na imaginação” (HUME, 2001, p. 292).

E o que torna possível essa união? De onde vem, afinal, a ideia da identidade pessoal? Hume, seguindo uma sugestão de Locke, atribui à memória o papel fundamental. A memória, diz Hume, “não apenas revela a identidade, mas também contribui para sua produção, ao produzir a relação de semelhança entre as percepções”. Mais adiante, diz ainda:

“Como apenas a memória nos faz conhecer a continuidade dessa sucessão de percepções, devemos considerá-la, sobretudo por essa razão, como a fonte da identidade pessoal” (HUME, 2001, p. 294).

Essa conclusão é um tanto desconcertante, mesmo para Hume. Tanto que, pouco depois, recolocando a questão de uma perspectiva ligeiramente diferente, vai dizer:

“A memória não tanto produz, mas revela a identidade pessoal, ao nos mostrar a relação de causa e efeito existente entre nossas diferentes percepções” (HUME, 2001, p. 294),

Invertendo a atribuição que havia feito antes à memória, no que diz respeito à identidade pessoal.

Essa análise de Hume tenta dar um golpe de misericórdia na ideia de substância (ou ideia de “eu”). Para Descartes, a ideia de que eu me percebo como uma coisa pensante é fundamental. Locke, com suas ambiguidades, começa a problematizar a noção de substância em geral. Berkeley usa essas mesmas ambiguidades para rejeitar a noção de substância material.

Hume, também se valendo de Locke, em alguma medida, mas também do próprio Berkeley, rejeita a ideia mesmo de uma coisa pensante, fechando o ciclo. Com Hume, o desafio empirista à tradição racionalista chega ao máximo. Seus argumentos são fortes e engenhosos, e o ceticismo moderado é suficiente para estimular alguns contra sua filosofia.

O estímulo à reflexão lançado por Hume vai ser, em especial, sentido pelo filósofo Immanuel Kant, de certa forma, vai fechar o período moderno na história da filosofia, atando alguns fios soltos e preparando os grandes temas da filosofia posterior. É notória a afirmação de Kant de que a leitura da obra de David Hume lhe retirou de seu “sono dogmático”.

Referências Bibliográficas


  1. BERKELEY, George; HUME, David. Tratado sobre o entendimento humano; Investigação sobre o entendimento humano e outras obras. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
  2. LOCKE, John. Carta acerca da tolerância e outras obras. São Paulo: Abril Cultural, 1978
  3. BURTT, Edwin A. As bases metafísicas da ciência moderna. Brasília: UnB, 1983.
  4. DESCARTES, René. Discurso do método, meditações e outras obras. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Frases de David Hume


  1. “Os homens têm o hábito de recorrer a princípios invisíveis para explicar as coisas que os surpreendem.”
  2. “Relatos sobrenaturais e milagres religiosos proliferam principalmente entre as nações ignorantes.”
  3. “A paixão pela filosofia, assim como pela religião, são inconvenientes quando dirigidas com imprudência.”
  4. “Um coração egocêntrico não pode conceber espontaneamente a amizade e a bondade.”
  5. “Se a filosofia for cuidadosamente cultivada por alguns, difunde-se gradualmente por toda a sociedade. O político adquire mais cautela na divisão do poder, o advogado adquire juízos mais sutis, e o general mais atenção em suas manobras.”

Confira aqui mais frases de David Hume!

Obras de David Hume


  1. Tratado da Natureza Humana (1739-1740)
  2. Investigação sobre o entendimento Humano (1748)
  3. Investigação sobre os Princípios da Moral (1751)
  4. Ensaios Morais, Políticos e Literários (1741-1742)
  5. A História da Inglaterra (1754-1762)
  6. Quatro Dissertações (1757)
  7. História Natural da Religião (1757)
  8. Diálogos sobre a Religião Natural

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